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Trincheiras sutis

“Se a chave de baixo estiver trancada, cuidado pra não encostar, porque é ali que fazem xixi.” Não estava trancada em baixo. Abri em cima e a porta se soltou. Não pela primeira vez, mas desta vez olhei bem, inspirada pelos maus espíritos, como o prédio é estranho. Estranho não do tipo diferente. Estranho do tipo beirando o sinistro, o hospício, a ala dos desenganados. Logo na entrada escura, há uma cena que não sei nomear. Uma estante preta sustenta separadamente, de maneira organizada, pensada, um em cada divisória, os seguintes objetos: um quadro de casas do interior, dois patos de papel dobrado e colado, um caramujo feliz de massa esculpido sobre uma concha de caramujo de verdade, uma Virgem Negra, um pequeno vaso com flores artificiais muito exuberantes, um pequeno vasinho branco que parece um porta ovo, um quadro de girassóis, uns óculos escuros grandes de armação roxa brilhante e, por último, terminando a terceira fileira da terceira coluna, um outro quadro de casinhas do interior. Os quadros são assinados por Oraide. Imaginei pelos traços tratar-se de uma senhora aposentada na oficina de pintura para a terceira idade. Realizou as obras, mas nem ela mesma as aguentava. Doou-as para alguém que acreditara ser generosidade da senhora. Ela, que saiu aliviada, ganhou na fama e no proveito de se livrar daquilo logo.

Ao lado da estante estão objetos antigos que não posso distinguir nem imaginar para que servem. São ferragens desertas, sem função, acumulando pó na escuridão. Ao lado da porta, quase de frente para a estante preta, está um pedaço de armário que se parece muito com um que tínhamos em casa quando eu era criança. Pensei que seria muito estranho encontrar de novo um armário doado naquela situação. Mas não. A disposição das gavetas e dos puxadores era distinta, embora a madeira parecesse ser da mesmíssima origem, talvez da mesma árvore.

Subi cogitando a mente perturbada que teria disposto ali aqueles itens cuidadosamente geridos, talvez já com a fina intenção de ferir os transeuntes logo na entrada, até para desestimular os que não trouxessem no peito um coração valente, livre de maledicências, quem sabe sobreavisar os cautos que recorrem às magias.

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